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ゴールキーパーLuizãoとコブラCascavel
ゴールキーパーLuizãoとコブラCascavel

                                                                                                       CARTA AOS AMIGOS

 Meus amigos!

 

Escrevo-lhes esta carta, achando-me no ambiente retratado na foto abaixo. Um pouco aborrecido com certas bençãos e maravilhas da pós-modernidade e da vida na metrópole, tais como a violência cotidiana, o tráfego caótico, os motoqueiros e as bicicletas de entregas sobre as calçadas, o ruído estridente das sirenes de ambulâncias e viaturas policiais, a voracidade fiscal do Estado, os radares e as câmeras (uns geradores de multas e as outras invasoras da privacidade), as manifestações contra e/ou a favor de qualquer coisa ou de qualquer criatura messiânica, resolvi descansar, por uns dias, no passado, meados do século XVII, período barroco.

 

E é deste lugar e destes tempos, em silêncio e recolhimento, dedicando-me à reflexão, bem como a ler e a escrever, à luz das velas, nesta atmosfera seiscentista e propícia ao espírito, que lhes envio a mensagem e a foto, com meu abraço.

 

Bom fim de semana!

 

Dentro de alguns dias, estarei de volta.

 Miniconto XC                                                                                                      O CANDIDATO

O candidato, em palestra, numa sala de aula, anunciava as prioridades de sua futura gestão. Dizia que trabalharia pela Educação, pela Cultura, pelo Esporte, pela Saúde, pelo Saneamento Básico, pelos Transportes Coletivos, pela Infância, pelos Idosos, pelo Meio Ambiente, pelos Consumidores, por mais empregos e por incontáveis outros setores, sem mencionar qualquer programa de execução ou projeto específico para concretizar suas numerosas metas. Um aluno indagou sobre o que tinha ele em mente para cada uma dessas áreas, ao que respondeu o político:

-Detalharemos tudo depois das eleições!

Outro aluno perguntou:

- De onde virão os recursos financeiros para tanto?

- Veremos após as eleições! - redarguiu o candidato.

O terceiro estudante, dirigindo-se à professora, que, em silêncio, acompanhava tudo, perguntou-lhe:

- Professora! Será que ele preparou esse discurso com base na Inteligência Artificial?

E a mestra respondeu:

-Não, querido! Esse discurso é fruto da Inteligência Superficial, mesmo!

                                                                                                 A JAQUETA

Sempre quisera possuir uma jaqueta como aquela, mas nunca tivera o suficiente para tanto. Afinal, sonho realizado. A jaqueta que acabara de comprar, ainda que não fosse nova, parecia jamais ter sido usada. Saindo do brechó, não resistindo à ansiedade, tirou-a da sacola e vestiu-a, explorando, com as pontas dos dedos, a textura do tecido.

Apalpando um pequeno bolso interno, ouviu o leve ruído de papel que se comprime; retirando-o, viu que nele estava escrito um número de telefone. Fixando a atenção na sequência numérica, sua expressão facial se modificou, da exultação à surpresa, passando, rapidamente, à inquietação.

Com o cenho franzido, assentou-se ao banco da praça e ali permaneceu a refletir. Sim, não havia qualquer dúvida, aquele era o número telefônico de sua esposa, até alguns meses antes. Uma avalanche de perguntas precipitava-se, insidiosamente, em sua cabeça. Voltou à loja e indagou à vendedora quem trocara ou alienara ali aquela jaqueta, respondendo ela que ignorava, pois isso ocorrera antes de seu ingresso no emprego.

Voltou ao banco da praça, entregando-se, por um bom par de horas, ao trato das ideias. A surpresa inicial desaguara num misto de dúvida e angústia.

Em casa, ao mostrar a jaqueta à esposa, vigiou atentamente o movimento de seus olhos, o ríctus de seu rosto, a contração de seus lábios. Nada notou que pudesse agravar-lhe ainda mais as suspeitas. Aparentando compartilhar a presumida satisfação que ele experimentava, pela ambicionada aquisição, respondeu com elogios à peça de vestuário e ao bom gosto dele.

Veio a noite. Atormentado por pensamentos compulsivos, tentou, sem êxito, conciliar o sono. Não tinha coragem de inquirir a esposa a respeito do pequeno pedaço de papel com o antigo número de seu telefone, no bolso de uma jaqueta masculina, vendida a um brechó, por um desconhecido que, sem sucesso, tentara identificar.Temia a reação dela, temia a resposta, temia, principalmente, entrever ou sentir, em sua reação, qualquer sinal confirmatório de seus pensamentos torturantes. Obcecado, tinha ímpetos de questioná-la em tom incisivo, mas logo se dava conta de que, além de infrutífero, poderia ser desastroso. Com o passar dos dias, o inferno interior que vivia foi moldando seu semblante, permanentemente absorto, no qual se via algo como uma dor secreta, pungente, silenciosa. Sua transformação não passara despercebida à esposa que, com frequência, perguntava-lhe a respeito, ao que ele dizia estar tudo bem.

Cogitou, incontáveis vezes, sobre consultar um psiquiatra, visitar uma cartomante, uma cigana, ou qualquer dessas profissionais das adivinhações, mas logo desistia. Abrir-se com um amigo era algo impensável, não só porque seu modo de ser não lhe permitia, como, sobretudo, porque sentia vergonha.

Finalmente, certa manhã, após haver conseguido algumas horas de sono, parecia-lhe haver despertado com uma possível solução.

Na tarde daquele dia, ao chegar do trabalho, a esposa sentiu cheiro de combustível, ao mesmo tempo em que via uma fumaça enegrecida, vinda do quintal, invadir a cozinha. Encontrou-o ajoelhado, tendo à frente a jaqueta em chamas. Segurava um livro, de cujas páginas lia palavras ininteligíveis.

Colhida pelo pânico, indagou-lhe, aflita, o que fazia, ao que ele, contido, quase solene, completamente livre de qualquer emoção, respondeu que estava eliminando os demônios.

Atônita com a resposta, a esposa permaneceu estática, no mesmo ponto em que parara ao chegar, aguardando silenciosamente o fim do ritual.

Quando as chamas se apagaram e a fumaça se evolara completamente, restando no solo apenas as cinzas da fatídica e outrora cobiçada peça de vestuário, ele se levantou, fechou o livro e o entregou à esposa. Na capa dura, de acentuada tonalidade roxa, continha-se, em letras negras, de traços góticos, o título “Manual Prático de “Exorcismo”.

Anoiteceu. Recolheu-se cedo. Naquela noite adormeceu em paz. No dia seguinte, a caminho do trabalho, passou defronte a loja de roupas usadas, em cuja porta havia uma placa: “Mudamos para…”. Não quis ler o restante da frase.

                                                                                                                   BUSCA

Procurei-te

no mistério da noite silente

no fulgor do astro perdido

na glorificação da alvorada

na policromia do arrebol

Procurei-te

no aroma sutil das verbenas

no lépido voo das aves

no polimorfismo dos bosques

no plácido fluir dos riachos

Procurei-te

na suntuosidade dos templos

na multiplicidade dos mitos

nos cerimoniais das seitas

na exaltação aos deuses

Procurei-te

no burburinho das massas

na louca maratona dos homens

no formigueiro das ruas

na heterogeneidade dos povos

Procurei-te

na plenitude do presente

no aceno do passado

na espera do amanhã

na ampulheta do tempo

Procurei-te

nas coisas simples e complexas

na indivisibilidade das células

na conformação do átomo

na amplidão do infinito

Procurei-te

e fiz desta procura

a motivação da existência

perpassando intrincadas sendas

em busca incessante

Procurei-te

não vi tuas mil faces

apenas consegui sentir-te

a partir do instante em que

comecei a crer em Ti.

                                                                                            Recomeço*
 

-O que trazes?

Indagou-me o guardião.

-Trago preces, incontáveis,

crucificadas no murmúrio dos lábios

E fantasias que abortaram

no ventre voraz do tempo
 

Trago fadigas que jamais souberam

a noite do repouso

E poemas que jazem na tumba do silêncio,

estranhos ao fascínio das palavras

Trago espantos cativos da mudez

E aventuras que finaram no desejo vão
 

Trago beijos imaginários,

distantes do lodaçal das bocas

Infensos ao asco da carne

E olhos secos de pranto,

Da secura ímpia dos areais mortos
 

Trago ternuras que jamais dei,

como a figueira estéril da rota de Betânia

Como o servo que enterrou o talento,

temeroso da crueza do amo.

E há esta arca de segredos inconfessos

que valem o peso de mil pedras do templo
 

Não sei como vim.

Se no lesto giro dos astros

Ou nas plumas ocultas do vento

Sob hosanas de santas legiões

Ou pelas mãos tutelares dos anjos.
 

Minhas crenças adernaram

como velas rotas pela ira dos ares

E minhas glórias de ontem se mesclam

às cinzas das aldeias calcinadas

Em meio a tantos destinos fartos

aporto de mãos vazias.
 

Não me fiz lacaio das amarras da fé,

a mais feroz das fraquezas,

que fiou mortalhas para povos e eras

E, assim, não rogo bênçãos ou redenção.
 

Nem mesmo trago um lírio:

Os jardins morreram ao nascer o homem

E sequer tenho às mãos um lume de candil:

Às cegas, pisei o breu das trilhas
 

Não trago, ao menos, um bordão de peregrino

para suster a carga de meus débitos

ou me arrimar nos labirintos

Também não trago temores,

que geram deuses e demônios

algozes da razão e da vontade.
 

De tudo, após meus passos,

o epitáfio de um mundo findo

com suas relações extintas,

e as pedras de um mausoléu deserto

povoado de silêncios.

Por fim, redarguiu o guardião:

-Se é tudo quanto trazes

e tão pouco o que deixaste,

entra e te abriga

Enquanto os teares da Sorte

tecem os fios do amanhã.

*Poema classificado entre os cinco finalistas do concurso literário nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição 2025.

                                                                                  O Homem Vitruviano*
 

Indiferente a tudo, aprisionado no cárcere de sua introspecção,

imobilizava-se ali, no coração da grande cidade, sentado sobre o concreto

sujo da calçada, o homem seminu, tendo à mão direta um pedaço de giz

branco, com o qual escrevia ou desenhava na superfície áspera chão.

 

Os pedestres, apressados, tão logo o entreviam, tomavam rumo de

desvio, passando ao largo de seus domínios.

 

De alguma distância pude avistá-lo, apesar da escassa claridade,

ganhando compreensão da cena com o avanço dos passos, até que, a alguns

metros, desviei-me também, fixando nele os olhos, ao mesmo tempo em que,

sem êxito, esforçava-me por entender a escrita ou o desenho lançado na tela

do piso público.

 

Por cautela, embora curioso, não me detive, passando pelo homem do

giz, mas voltei a cabeça, numa derradeira tentativa de apreender os detalhes

do quadro oferecido pelo anoitecer. Nada acrescentei à colheita de minhas

observações, salvo que se tratava de um homem certamente alto para os

padrões comuns, esquálido, de pele crestada pelo sol, cabelos desgrenhados,

barba crescida, torso coberto por andrajos encardidos, calças arregaçadas até

os joelhos, pés descalços, unhas longas e tintas pela poeira negra do asfalto,

tudo moldando a figura típica do morador de rua.

 

Sentado em seu atelier, instalado sobre o lote de chão de que se

apropriara, que as posturas municipais tratam, em linguagem técnica, como

bem de uso comum do povo, o homem do giz tinha as compridas pernas

estendidas e abertas, distando entre elas o espaço de poucos palmos, a

lembrar uma das posições do homem vitruviano, de Da Vinci, inspirado no

arquiteto romano Marco Vitruvio Polli. Se estivesse em pé, com os braços

na linha horizontal, estirados em cruz, mais vivamente lembraria o desenho

renascentista. Não fosse pelo fato de achar-se assentado no passeio público,

com a cabeça levemente inclinada em direção aos movimentos da mão com

o giz, dir-se-ia estar ali a figura do gênio do vilarejo de Anchiano

 

O homem concebido pelo arquiteto romano pré-cristão, depois

aperfeiçoado por Da Vinci durante a alta Renascença, encaixa-se, com

simetria e proporcionalidade, num quadrado e num círculo, cujas áreas totais

são idênticas (quadratura do círculo).

 

Bem por isso, a filosofia, indo além da perfeição visual da imagem,

atém-se à simbologia plural da obra, alertando para o círculo como

representação do divino, e para o quadrado como irradiação da divindade na

matéria; alocada a figura humana em ambas as molduras geométricas,

pretende-se detectar no conjunto a relação do homem com o universo, ou,

ainda, na ideação postural da criatura, com os braços postos em linha

longitudinal, lembrando uma cruz latina, plasma-se a verticalização do

homem na busca permanente do sagrado.

 

Agora, trazendo a cena de dias passados a estes instantes de reflexão,

suponho que o homem vitruviano, prostrado no caminho dos passantes

empurrados por suas urgências, nada sabe de tão engenhosas elaborações da

criatividade humana. Para ele, o coração da cidade é um deserto sem oásis.

Suas cogitações sobre o sagrado e o universo certamente conseguem apenas

devassar, com as armas da imaginação, o que pode existir além das paredes

inexpugnáveis do restaurante, cujo acesso se dá por uma escadaria que leva

a algo inalcançável. O sagrado, o universo, tudo quanto aspira oculta-se após

aquelas paredes que assemelham muralhas de fortalezas, e que exibem um

indecifrável logotipo comercial. Ademais, entre elas e o homem, erguem-se

aqueles proibitivos degraus. Inexiste placa impeditiva de entrada, mas o

homem a enxerga e a lê. Mais que isso, ele a intui. E o que lhe diz a invisível

placa é ‘não’. Diz para ele, mas não o diz para outros, que sobem e descem,

livremente, os degraus.

 

Menos de três horas transcorreram entre esse encontro e minha

passagem de retorno pelo mesmo sítio que o nômade maltrapilho declarara

de utilidade pessoal e exclusiva. Raros transeuntes na região, sob uma garoa

fina, exibiam no andar a pressa de vencer a solidão da rua e chegar ao lar. O

homem do giz também se fora, como se vão os moradores das ruas, pois

estão sempre indo, malgrado não saibam para onde. Sua jornada é uma

sucessão de chegadas e partidas, como tropas em campanha, que estacionam

a intervalos breves.

 

Na verdade, eles vagam, pois notário algum lhes concede título

dominial sobre as áreas de suas ocupações fugazes. Seu mapa de

deslocamentos constantes, como um emaranhado de riscos errantes, conduz

a todos os lugares e a lugar algum. É o nomadismo da miséria.

 

No lote de chão horas antes habitado pelo homem vitruviano,

exatamente defronte o grande restaurante de portas cerradas, restara apenas

o produto de seu concentrado labor com o caco de giz. Em letras de forma,

grandes e entre si espaçadas, estava escrita na lousa sórdida, pisada pelo

desdém dos homens, a palavra FOME.

 

O homem vitruviano, ou, diriam alguns, o seu oposto, o arremedo da

perfeição renascentista, cumprira o seu papel, deixara sua mensagem e

partira. Seria o esfarrapado um mensageiro? De quê? De quem? Importa

refletir, visto que o mundo teve muitos mensageiros, ignorados pelas eras, e

muitas mensagens, jamais compreendidas. Ademais, as espécies de fome e

de famintos são incontáveis. É preciso distingui-los. Fome de poder, fome de

riquezas, fome de domínio, fome de sexo, fome de saber, fome de amor, fome

de destruição, fome de sangue, fome de justiça. Os tiranos, as meretrizes, os

sábios, os miseráveis, os conquistadores, os potentados, os algozes, as

vítimas, todos são impulsionados por algum tipo de fome. Monarcas ou

vassalos, todos se encaixam nalgum subtipo de faminto.

 

Os que não identificam o tipo de avidez que os encara, podem acabar

abocanhados, devorados, engolidos como barcos frágeis tragados pelas

tempestades ou como ovelhas surpreendidas pelos predadores.

 

O homem vitruviano, semivestido de seus molambos, precocemente

encarquilhado pela inclemência da crua liberdade de seus dias, neste instante

-quem sabe- rabisca sua mensagem noutro sórdido sítio de chão, enquanto

os transeuntes se desviam dos sagrados domínios de seu universo e de sua

fome, que é apenas a mais conhecida de todas as fomes que atormentam os

seres humanos.

 

É provável que o mistério das coincidências o tenha conduzido a

escolher, na vastidão dos logradouros públicos da metrópole, um sítio

qualquer de calçada, próximo às portas de algum dos milhares de

restaurantes que aplacam a gula dos homens.

 

*Crônica semifinalista no concurso literário nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição 2025.

                                                                                                   A Oficina*

Éramos três a conversar, no pequeno estabelecimento do centro

velho. Uma oficina, vários ofícios; o engraxate, a costureira e este

cronista, embora ali estivesse, ainda, o sapateiro, respirando o

universo próprio de seu mutismo, alheio à prosa e aos circunstantes.

 

Distante de sua gente, que ficara no interior do Ceará, a artesã

dos remendos contava sua epopeia de migrante, enquanto punha

alinhavos nas roupas surradas de seus fregueses, descrevendo

paisagens do sertão estorricado, povoado de carcaças dos bichos em

torno dos buracos que foram açudes.

 

O engraxate, batendo os panos sobre os meus sapatos, produzia

um som de percussionista, e ensinava aos desinformados que no

subsolo daquela terra em cinzas, coberta de ossadas animais, havia um

colossal lençol freático, concluindo, pois, que a solução para tudo

estava li mesmo, debaixo dos pés dos sedentos, bastando abrir poços

artesianos, ao invés das lodosas cisternas. Nada disse, nem era

previsível que o dissesse, sobre a provisoriedade dos rios em parte

daquele bioma, impedindo lençóis permanentes, sem contar os

terrenos sedimentares, de consistência pedregosa, oriundos da elevada

evapotranspiração.

 

A cidade tem muitos desses lugares modestos, em que

profissionais de alguns ofícios se agrupam para ganhar o pão de cada

dia, dividindo as despesas da locação. Ouve-se de tudo, como nos

parlamentos e nas barbearias, e é certo que os habituês dessas casas de

serviços mentem menos que os integrantes das casas parlamentares.

Existe a chance de aprender algo, quando menos, a conhecer as gentes,

o que muito importa. Pobre é o homem que não conhece o povo, o seu

povo, essa entidade multifária e ambígua, de que, por vezes, nos

excluímos como se fôssemos de outro planeta.

 

Curioso que tão numerosa universalidade de pensantes encontre

abrigo conceitual em tão singelo dissílabo: povo. Mais curioso é que

muitos vocábulos ligados à ideia de altas densidades demográficas

sejam igualmente monossilábicos ou curtos: clã, grei, massa, raça,

tribo, gente. Malgrado o viés de acomodar os indivíduos que compõem

o povo nas valas da estereotipia, ainda que restrita a segmentações

sociológicas ou antropológicas, a verdade é que as criaturas dessa

colmeia, podem ser tão díspares umas das outras quanto os astros de

uma galáxia, a começar pelas impressões digitais.

 

Tive ouvidos para ambos, a costureira e o engraxate, por um

bom quarto de hora, inclusive quando ambos falavam ao mesmo

tempo, instigando-os a palrar (ou palrear), como dizem nossos irmãos

lusos, bons palradores, a despeito da suave aura de melancolia a pairar

nos ares de algumas regiões daquelas terras, de cujos mares saíram as

caravelas, empurradas para estes trópicos pelos ventos que varrem o

Atlântico.

 

Atento à tese das águas ocultas sob a caatinga, lá no fundo do

chão, às evocações sofridas desfiadas pela mulher que lidava com as

peças puídas de vestuário, esperei, em vão, um som qualquer do

sapateiro, recluso no silêncio tumular de sua indiferença, às voltas com

a missão de colar as solas gastas pelas andanças dos mortais que vão

e vêm.

 

Pendurados pelas paredes, feixes de cadarços para calçados de

variadas cores, palmilhas e embalagens com tubos de pomadas para os

incontáveis males que afligem os pés, sobre os quais transitam as

pesadas ambições dos homens, além de outros sentimentos que

acrescem toneladas às consciências de muitos. Sobre o balcão rústico,

os indefectíveis cadernos de jornais populares, semiabertos nas

páginas dedicadas às glórias do futebol e às misérias de ontem, cuja

leitura atende às exigências estéticas e críticas de parcela do

respeitável público leitor. Repentinamente, a fluidez narrativa da

costureira tornou-se entrecortada por períodos de silêncio,

inicialmente breves, progressivamente repetidos e longos, até que sua

voz se embargou por completo, afogada nos soluços que a custo

continha, enquanto passava as pontas dos dedos abaixo dos olhos,

enxugando as lágrimas teimosas. O engraxate, de cabeça baixa, nada

mais disse.

 

Daqueles olhos encharcados de pranto jorravam torrentes de

uma solidão infinita, longamente reprimida entre as muralhas de

concreto da cidade. Como as paredes de um dique em rompimento,

aquele rosto expulsava, em caudais, a nostalgia, a lembrança das

caatingas ermas, ressequidas e mortas como as amplidões desérticas,

as ossadas dos animais tombados pelo fogo das estações, os troncos

tenazes dos escassos mandacarus sobreviventes e, sobretudo, as

imagens de sua gente, respirando as brasas daquele mundo longínquo.

 

Nem mesmo as oceânicas reservas subterrâneas que inundavam

a imaginação do engraxate visionário, poderiam regar o areal tristonho

e sem oásis daquela alma solitária de migrante.

 

Da calçada, prestes a cruzar a rua, voltei-me para o interior da

oficina: em seu microcosmo físico, três personagens, três mundos; o

inaudível garantidor do direito de ir e vir, o percussionista navegador

das águas da utopia e a ave de arribação portando nas asas o próprio

ninho deserto.

 

À minha frente, os ônibus de assentos encardidos, cuspindo

fuligem negra, e os motoqueiros endoidecidos pela pressa, com suas

máquinas de ronco estridente, cuspindo impropérios contra motoristas

e pedestres.

 

*Crônica premiada em segundo lugar, no concurso nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição de 2025.

Wlalter Paulo Sabella

Wlalter Paulo Sabella

Wlalter Paulo Sabella

Wlalter Paulo Sabella

Wlalter Paulo Sabella

                                                                                           Olhares

Os olhos que me fitam

sabem mares jamais tocados

pela quilha das aventuras                                                                                      

E terras livres de fronteiras,                                      

ermas das sombras dos homens.  

Os olhos que me fixam

nada sabem das fadigas

que medram no rastro das andanças.

 

Os olhos que me cravam

a certeza de seus sonhos

querem campos virgens de lavor

e asas de amplidão.

Querem tudo que as utopias consentem

e muito além do que proíbem.

Sonham ares e caminhos

nunca dantes percorridos.

 

Os olhos que me veem

amam mundos prometidos

correm céus, viajam sóis,

espreitam cósmicas miragens.

Nada escondem ou confessam

nem ocultam sob o véu das faces.

 

Os olhos que me crivam

e hoje me sabem outro,

embora com indulgência,

pedem conta de meus atos:

Onde jaz a fantasia?

Do que é morta a esperança?

 

Os olhos que me acompanham

estão nas telas do tempo

cerrados em minhas retinas.

Pertencem a quem já fui.

São os olhos do menino

que há muito já não sou.

Wlalter Paulo Sabella

                                                                                                                         BABEL
Em tempos mais antigos, eram usuais as expressões “declamar um poema” ou “recitar um poema”; todavia, como tudo se expõe a mudanças, para a verbalização de um escrito poético sedimentou-se o uso da expressão “dizer um poema”. É o que faço neste post, com o poema “BABEL”, que escrevi e publiquei há mais de 15 anos, tendo-se dado, recentemente, sua republicação. Caso tenha interesse em ouvir o poema “dito”, basta um touch no retângulo escuro, abaixo da Babel mítica e ao lado da Babel contemporânea. Duração: 3min46s.

MINICONTO LXXXIX Por Walter Paulo Sabella                                   
                                                                                                        O DESVIO

Dois asteróides colossais, denominados Letum e Perses, viajavam velozmente rumo a um planeta cujos habitantes, há milênios, compraziam-se em guerras intermináveis. Dialogando durante a viagem, revisavam suas missões: -Tu produzirás o impacto no hemisfério austral, e eu me encarregarei da colisão contra o hemisfério boreal! -exclamou Letum. - Entendido - limitou-se a responder Perses. Enquanto isso, no planeta-alvo, alertadas pelos observatórios astronômicos, centenas de milhões de pessoas, clérigos e fiéis, de todas as crenças religiosas, aglomeradas em praças e ruas, irmanadas no desespero, oravam aos seus deuses, implorando pelo milagre da salvação. Em dado momento, no espaço sideral, um dos corpos celestes viajantes disse ao outro: - Abortar missão! - Como? Indagou Perses. - Sim, repito: Abortar operação. Ordens superiores. - disse Letum, acrescentando: - Correção de rumo, imediata! Os observatórios astronômicos anunciaram o inexplicável desvio dos asteróides; as multidões, exultantes, em ambos os hemisférios, celebraram durante horas. Depois, aos poucos, os locais públicos se tornaram desertos. No dia seguinte, os órgãos de imprensa do planeta anunciavam que estava mantido o encontro de cúpula das potências nucleares para ratificar os acordos garantidores de preservação e ampliação dos arsenais atômicos, químicos e bacteriológicos. Em sua nova rota, ainda atentos ao noticiário veiculado na plataforma planetária distante, Letum e Perses entreolharam-se e desapareceram na vastidão do infinito

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