
ゴールキーパーLuizãoとコブラCascavel
ゴールキーパーLuizãoとコブラCascavel
CARTA AOS AMIGOS
Meus amigos!
Escrevo-lhes esta carta, achando-me no ambiente retratado na foto abaixo. Um pouco aborrecido com certas bençãos e maravilhas da pós-modernidade e da vida na metrópole, tais como a violência cotidiana, o tráfego caótico, os motoqueiros e as bicicletas de entregas sobre as calçadas, o ruído estridente das sirenes de ambulâncias e viaturas policiais, a voracidade fiscal do Estado, os radares e as câmeras (uns geradores de multas e as outras invasoras da privacidade), as manifestações contra e/ou a favor de qualquer coisa ou de qualquer criatura messiânica, resolvi descansar, por uns dias, no passado, meados do século XVII, período barroco.
E é deste lugar e destes tempos, em silêncio e recolhimento, dedicando-me à reflexão, bem como a ler e a escrever, à luz das velas, nesta atmosfera seiscentista e propícia ao espírito, que lhes envio a mensagem e a foto, com meu abraço.
Bom fim de semana!
Dentro de alguns dias, estarei de volta.

Miniconto XC O CANDIDATO
O candidato, em palestra, numa sala de aula, anunciava as prioridades de sua futura gestão. Dizia que trabalharia pela Educação, pela Cultura, pelo Esporte, pela Saúde, pelo Saneamento Básico, pelos Transportes Coletivos, pela Infância, pelos Idosos, pelo Meio Ambiente, pelos Consumidores, por mais empregos e por incontáveis outros setores, sem mencionar qualquer programa de execução ou projeto específico para concretizar suas numerosas metas. Um aluno indagou sobre o que tinha ele em mente para cada uma dessas áreas, ao que respondeu o político:
-Detalharemos tudo depois das eleições!
Outro aluno perguntou:
- De onde virão os recursos financeiros para tanto?
- Veremos após as eleições! - redarguiu o candidato.
O terceiro estudante, dirigindo-se à professora, que, em silêncio, acompanhava tudo, perguntou-lhe:
- Professora! Será que ele preparou esse discurso com base na Inteligência Artificial?
E a mestra respondeu:
-Não, querido! Esse discurso é fruto da Inteligência Superficial, mesmo!

A JAQUETA
Sempre quisera possuir uma jaqueta como aquela, mas nunca tivera o suficiente para tanto. Afinal, sonho realizado. A jaqueta que acabara de comprar, ainda que não fosse nova, parecia jamais ter sido usada. Saindo do brechó, não resistindo à ansiedade, tirou-a da sacola e vestiu-a, explorando, com as pontas dos dedos, a textura do tecido.
Apalpando um pequeno bolso interno, ouviu o leve ruído de papel que se comprime; retirando-o, viu que nele estava escrito um número de telefone. Fixando a atenção na sequência numérica, sua expressão facial se modificou, da exultação à surpresa, passando, rapidamente, à inquietação.
Com o cenho franzido, assentou-se ao banco da praça e ali permaneceu a refletir. Sim, não havia qualquer dúvida, aquele era o número telefônico de sua esposa, até alguns meses antes. Uma avalanche de perguntas precipitava-se, insidiosamente, em sua cabeça. Voltou à loja e indagou à vendedora quem trocara ou alienara ali aquela jaqueta, respondendo ela que ignorava, pois isso ocorrera antes de seu ingresso no emprego.
Voltou ao banco da praça, entregando-se, por um bom par de horas, ao trato das ideias. A surpresa inicial desaguara num misto de dúvida e angústia.
Em casa, ao mostrar a jaqueta à esposa, vigiou atentamente o movimento de seus olhos, o ríctus de seu rosto, a contração de seus lábios. Nada notou que pudesse agravar-lhe ainda mais as suspeitas. Aparentando compartilhar a presumida satisfação que ele experimentava, pela ambicionada aquisição, respondeu com elogios à peça de vestuário e ao bom gosto dele.
Veio a noite. Atormentado por pensamentos compulsivos, tentou, sem êxito, conciliar o sono. Não tinha coragem de inquirir a esposa a respeito do pequeno pedaço de papel com o antigo número de seu telefone, no bolso de uma jaqueta masculina, vendida a um brechó, por um desconhecido que, sem sucesso, tentara identificar.Temia a reação dela, temia a resposta, temia, principalmente, entrever ou sentir, em sua reação, qualquer sinal confirmatório de seus pensamentos torturantes. Obcecado, tinha ímpetos de questioná-la em tom incisivo, mas logo se dava conta de que, além de infrutífero, poderia ser desastroso. Com o passar dos dias, o inferno interior que vivia foi moldando seu semblante, permanentemente absorto, no qual se via algo como uma dor secreta, pungente, silenciosa. Sua transformação não passara despercebida à esposa que, com frequência, perguntava-lhe a respeito, ao que ele dizia estar tudo bem.
Cogitou, incontáveis vezes, sobre consultar um psiquiatra, visitar uma cartomante, uma cigana, ou qualquer dessas profissionais das adivinhações, mas logo desistia. Abrir-se com um amigo era algo impensável, não só porque seu modo de ser não lhe permitia, como, sobretudo, porque sentia vergonha.
Finalmente, certa manhã, após haver conseguido algumas horas de sono, parecia-lhe haver despertado com uma possível solução.
Na tarde daquele dia, ao chegar do trabalho, a esposa sentiu cheiro de combustível, ao mesmo tempo em que via uma fumaça enegrecida, vinda do quintal, invadir a cozinha. Encontrou-o ajoelhado, tendo à frente a jaqueta em chamas. Segurava um livro, de cujas páginas lia palavras ininteligíveis.
Colhida pelo pânico, indagou-lhe, aflita, o que fazia, ao que ele, contido, quase solene, completamente livre de qualquer emoção, respondeu que estava eliminando os demônios.
Atônita com a resposta, a esposa permaneceu estática, no mesmo ponto em que parara ao chegar, aguardando silenciosamente o fim do ritual.
Quando as chamas se apagaram e a fumaça se evolara completamente, restando no solo apenas as cinzas da fatídica e outrora cobiçada peça de vestuário, ele se levantou, fechou o livro e o entregou à esposa. Na capa dura, de acentuada tonalidade roxa, continha-se, em letras negras, de traços góticos, o título “Manual Prático de “Exorcismo”.
Anoiteceu. Recolheu-se cedo. Naquela noite adormeceu em paz. No dia seguinte, a caminho do trabalho, passou defronte a loja de roupas usadas, em cuja porta havia uma placa: “Mudamos para…”. Não quis ler o restante da frase.

BUSCA
Procurei-te
no mistério da noite silente
no fulgor do astro perdido
na glorificação da alvorada
na policromia do arrebol
Procurei-te
no aroma sutil das verbenas
no lépido voo das aves
no polimorfismo dos bosques
no plácido fluir dos riachos
Procurei-te
na suntuosidade dos templos
na multiplicidade dos mitos
nos cerimoniais das seitas
na exaltação aos deuses
Procurei-te
no burburinho das massas
na louca maratona dos homens
no formigueiro das ruas
na heterogeneidade dos povos
Procurei-te
na plenitude do presente
no aceno do passado
na espera do amanhã
na ampulheta do tempo
Procurei-te
nas coisas simples e complexas
na indivisibilidade das células
na conformação do átomo
na amplidão do infinito
Procurei-te
e fiz desta procura
a motivação da existência
perpassando intrincadas sendas
em busca incessante
Procurei-te
não vi tuas mil faces
apenas consegui sentir-te
a partir do instante em que
comecei a crer em Ti.


Recomeço*
-O que trazes?
Indagou-me o guardião.
-Trago preces, incontáveis,
crucificadas no murmúrio dos lábios
E fantasias que abortaram
no ventre voraz do tempo
Trago fadigas que jamais souberam
a noite do repouso
E poemas que jazem na tumba do silêncio,
estranhos ao fascínio das palavras
Trago espantos cativos da mudez
E aventuras que finaram no desejo vão
Trago beijos imaginários,
distantes do lodaçal das bocas
Infensos ao asco da carne
E olhos secos de pranto,
Da secura ímpia dos areais mortos
Trago ternuras que jamais dei,
como a figueira estéril da rota de Betânia
Como o servo que enterrou o talento,
temeroso da crueza do amo.
E há esta arca de segredos inconfessos
que valem o peso de mil pedras do templo
Não sei como vim.
Se no lesto giro dos astros
Ou nas plumas ocultas do vento
Sob hosanas de santas legiões
Ou pelas mãos tutelares dos anjos.
Minhas crenças adernaram
como velas rotas pela ira dos ares
E minhas glórias de ontem se mesclam
às cinzas das aldeias calcinadas
Em meio a tantos destinos fartos
aporto de mãos vazias.
Não me fiz lacaio das amarras da fé,
a mais feroz das fraquezas,
que fiou mortalhas para povos e eras
E, assim, não rogo bênçãos ou redenção.
Nem mesmo trago um lírio:
Os jardins morreram ao nascer o homem
E sequer tenho às mãos um lume de candil:
Às cegas, pisei o breu das trilhas
Não trago, ao menos, um bordão de peregrino
para suster a carga de meus débitos
ou me arrimar nos labirintos
Também não trago temores,
que geram deuses e demônios
algozes da razão e da vontade.
De tudo, após meus passos,
o epitáfio de um mundo findo
com suas relações extintas,
e as pedras de um mausoléu deserto
povoado de silêncios.
Por fim, redarguiu o guardião:
-Se é tudo quanto trazes
e tão pouco o que deixaste,
entra e te abriga
Enquanto os teares da Sorte
tecem os fios do amanhã.
*Poema classificado entre os cinco finalistas do concurso literário nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição 2025.
O Homem Vitruviano*
Indiferente a tudo, aprisionado no cárcere de sua introspecção,
imobilizava-se ali, no coração da grande cidade, sentado sobre o concreto
sujo da calçada, o homem seminu, tendo à mão direta um pedaço de giz
branco, com o qual escrevia ou desenhava na superfície áspera chão.
Os pedestres, apressados, tão logo o entreviam, tomavam rumo de
desvio, passando ao largo de seus domínios.
De alguma distância pude avistá-lo, apesar da escassa claridade,
ganhando compreensão da cena com o avanço dos passos, até que, a alguns
metros, desviei-me também, fixando nele os olhos, ao mesmo tempo em que,
sem êxito, esforçava-me por entender a escrita ou o desenho lançado na tela
do piso público.
Por cautela, embora curioso, não me detive, passando pelo homem do
giz, mas voltei a cabeça, numa derradeira tentativa de apreender os detalhes
do quadro oferecido pelo anoitecer. Nada acrescentei à colheita de minhas
observações, salvo que se tratava de um homem certamente alto para os
padrões comuns, esquálido, de pele crestada pelo sol, cabelos desgrenhados,
barba crescida, torso coberto por andrajos encardidos, calças arregaçadas até
os joelhos, pés descalços, unhas longas e tintas pela poeira negra do asfalto,
tudo moldando a figura típica do morador de rua.
Sentado em seu atelier, instalado sobre o lote de chão de que se
apropriara, que as posturas municipais tratam, em linguagem técnica, como
bem de uso comum do povo, o homem do giz tinha as compridas pernas
estendidas e abertas, distando entre elas o espaço de poucos palmos, a
lembrar uma das posições do homem vitruviano, de Da Vinci, inspirado no
arquiteto romano Marco Vitruvio Polli. Se estivesse em pé, com os braços
na linha horizontal, estirados em cruz, mais vivamente lembraria o desenho
renascentista. Não fosse pelo fato de achar-se assentado no passeio público,
com a cabeça levemente inclinada em direção aos movimentos da mão com
o giz, dir-se-ia estar ali a figura do gênio do vilarejo de Anchiano
O homem concebido pelo arquiteto romano pré-cristão, depois
aperfeiçoado por Da Vinci durante a alta Renascença, encaixa-se, com
simetria e proporcionalidade, num quadrado e num círculo, cujas áreas totais
são idênticas (quadratura do círculo).
Bem por isso, a filosofia, indo além da perfeição visual da imagem,
atém-se à simbologia plural da obra, alertando para o círculo como
representação do divino, e para o quadrado como irradiação da divindade na
matéria; alocada a figura humana em ambas as molduras geométricas,
pretende-se detectar no conjunto a relação do homem com o universo, ou,
ainda, na ideação postural da criatura, com os braços postos em linha
longitudinal, lembrando uma cruz latina, plasma-se a verticalização do
homem na busca permanente do sagrado.
Agora, trazendo a cena de dias passados a estes instantes de reflexão,
suponho que o homem vitruviano, prostrado no caminho dos passantes
empurrados por suas urgências, nada sabe de tão engenhosas elaborações da
criatividade humana. Para ele, o coração da cidade é um deserto sem oásis.
Suas cogitações sobre o sagrado e o universo certamente conseguem apenas
devassar, com as armas da imaginação, o que pode existir além das paredes
inexpugnáveis do restaurante, cujo acesso se dá por uma escadaria que leva
a algo inalcançável. O sagrado, o universo, tudo quanto aspira oculta-se após
aquelas paredes que assemelham muralhas de fortalezas, e que exibem um
indecifrável logotipo comercial. Ademais, entre elas e o homem, erguem-se
aqueles proibitivos degraus. Inexiste placa impeditiva de entrada, mas o
homem a enxerga e a lê. Mais que isso, ele a intui. E o que lhe diz a invisível
placa é ‘não’. Diz para ele, mas não o diz para outros, que sobem e descem,
livremente, os degraus.
Menos de três horas transcorreram entre esse encontro e minha
passagem de retorno pelo mesmo sítio que o nômade maltrapilho declarara
de utilidade pessoal e exclusiva. Raros transeuntes na região, sob uma garoa
fina, exibiam no andar a pressa de vencer a solidão da rua e chegar ao lar. O
homem do giz também se fora, como se vão os moradores das ruas, pois
estão sempre indo, malgrado não saibam para onde. Sua jornada é uma
sucessão de chegadas e partidas, como tropas em campanha, que estacionam
a intervalos breves.
Na verdade, eles vagam, pois notário algum lhes concede título
dominial sobre as áreas de suas ocupações fugazes. Seu mapa de
deslocamentos constantes, como um emaranhado de riscos errantes, conduz
a todos os lugares e a lugar algum. É o nomadismo da miséria.
No lote de chão horas antes habitado pelo homem vitruviano,
exatamente defronte o grande restaurante de portas cerradas, restara apenas
o produto de seu concentrado labor com o caco de giz. Em letras de forma,
grandes e entre si espaçadas, estava escrita na lousa sórdida, pisada pelo
desdém dos homens, a palavra FOME.
O homem vitruviano, ou, diriam alguns, o seu oposto, o arremedo da
perfeição renascentista, cumprira o seu papel, deixara sua mensagem e
partira. Seria o esfarrapado um mensageiro? De quê? De quem? Importa
refletir, visto que o mundo teve muitos mensageiros, ignorados pelas eras, e
muitas mensagens, jamais compreendidas. Ademais, as espécies de fome e
de famintos são incontáveis. É preciso distingui-los. Fome de poder, fome de
riquezas, fome de domínio, fome de sexo, fome de saber, fome de amor, fome
de destruição, fome de sangue, fome de justiça. Os tiranos, as meretrizes, os
sábios, os miseráveis, os conquistadores, os potentados, os algozes, as
vítimas, todos são impulsionados por algum tipo de fome. Monarcas ou
vassalos, todos se encaixam nalgum subtipo de faminto.
Os que não identificam o tipo de avidez que os encara, podem acabar
abocanhados, devorados, engolidos como barcos frágeis tragados pelas
tempestades ou como ovelhas surpreendidas pelos predadores.
O homem vitruviano, semivestido de seus molambos, precocemente
encarquilhado pela inclemência da crua liberdade de seus dias, neste instante
-quem sabe- rabisca sua mensagem noutro sórdido sítio de chão, enquanto
os transeuntes se desviam dos sagrados domínios de seu universo e de sua
fome, que é apenas a mais conhecida de todas as fomes que atormentam os
seres humanos.
É provável que o mistério das coincidências o tenha conduzido a
escolher, na vastidão dos logradouros públicos da metrópole, um sítio
qualquer de calçada, próximo às portas de algum dos milhares de
restaurantes que aplacam a gula dos homens.
*Crônica semifinalista no concurso literário nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição 2025.
A Oficina*
Éramos três a conversar, no pequeno estabelecimento do centro
velho. Uma oficina, vários ofícios; o engraxate, a costureira e este
cronista, embora ali estivesse, ainda, o sapateiro, respirando o
universo próprio de seu mutismo, alheio à prosa e aos circunstantes.
Distante de sua gente, que ficara no interior do Ceará, a artesã
dos remendos contava sua epopeia de migrante, enquanto punha
alinhavos nas roupas surradas de seus fregueses, descrevendo
paisagens do sertão estorricado, povoado de carcaças dos bichos em
torno dos buracos que foram açudes.
O engraxate, batendo os panos sobre os meus sapatos, produzia
um som de percussionista, e ensinava aos desinformados que no
subsolo daquela terra em cinzas, coberta de ossadas animais, havia um
colossal lençol freático, concluindo, pois, que a solução para tudo
estava li mesmo, debaixo dos pés dos sedentos, bastando abrir poços
artesianos, ao invés das lodosas cisternas. Nada disse, nem era
previsível que o dissesse, sobre a provisoriedade dos rios em parte
daquele bioma, impedindo lençóis permanentes, sem contar os
terrenos sedimentares, de consistência pedregosa, oriundos da elevada
evapotranspiração.
A cidade tem muitos desses lugares modestos, em que
profissionais de alguns ofícios se agrupam para ganhar o pão de cada
dia, dividindo as despesas da locação. Ouve-se de tudo, como nos
parlamentos e nas barbearias, e é certo que os habituês dessas casas de
serviços mentem menos que os integrantes das casas parlamentares.
Existe a chance de aprender algo, quando menos, a conhecer as gentes,
o que muito importa. Pobre é o homem que não conhece o povo, o seu
povo, essa entidade multifária e ambígua, de que, por vezes, nos
excluímos como se fôssemos de outro planeta.
Curioso que tão numerosa universalidade de pensantes encontre
abrigo conceitual em tão singelo dissílabo: povo. Mais curioso é que
muitos vocábulos ligados à ideia de altas densidades demográficas
sejam igualmente monossilábicos ou curtos: clã, grei, massa, raça,
tribo, gente. Malgrado o viés de acomodar os indivíduos que compõem
o povo nas valas da estereotipia, ainda que restrita a segmentações
sociológicas ou antropológicas, a verdade é que as criaturas dessa
colmeia, podem ser tão díspares umas das outras quanto os astros de
uma galáxia, a começar pelas impressões digitais.
Tive ouvidos para ambos, a costureira e o engraxate, por um
bom quarto de hora, inclusive quando ambos falavam ao mesmo
tempo, instigando-os a palrar (ou palrear), como dizem nossos irmãos
lusos, bons palradores, a despeito da suave aura de melancolia a pairar
nos ares de algumas regiões daquelas terras, de cujos mares saíram as
caravelas, empurradas para estes trópicos pelos ventos que varrem o
Atlântico.
Atento à tese das águas ocultas sob a caatinga, lá no fundo do
chão, às evocações sofridas desfiadas pela mulher que lidava com as
peças puídas de vestuário, esperei, em vão, um som qualquer do
sapateiro, recluso no silêncio tumular de sua indiferença, às voltas com
a missão de colar as solas gastas pelas andanças dos mortais que vão
e vêm.
Pendurados pelas paredes, feixes de cadarços para calçados de
variadas cores, palmilhas e embalagens com tubos de pomadas para os
incontáveis males que afligem os pés, sobre os quais transitam as
pesadas ambições dos homens, além de outros sentimentos que
acrescem toneladas às consciências de muitos. Sobre o balcão rústico,
os indefectíveis cadernos de jornais populares, semiabertos nas
páginas dedicadas às glórias do futebol e às misérias de ontem, cuja
leitura atende às exigências estéticas e críticas de parcela do
respeitável público leitor. Repentinamente, a fluidez narrativa da
costureira tornou-se entrecortada por períodos de silêncio,
inicialmente breves, progressivamente repetidos e longos, até que sua
voz se embargou por completo, afogada nos soluços que a custo
continha, enquanto passava as pontas dos dedos abaixo dos olhos,
enxugando as lágrimas teimosas. O engraxate, de cabeça baixa, nada
mais disse.
Daqueles olhos encharcados de pranto jorravam torrentes de
uma solidão infinita, longamente reprimida entre as muralhas de
concreto da cidade. Como as paredes de um dique em rompimento,
aquele rosto expulsava, em caudais, a nostalgia, a lembrança das
caatingas ermas, ressequidas e mortas como as amplidões desérticas,
as ossadas dos animais tombados pelo fogo das estações, os troncos
tenazes dos escassos mandacarus sobreviventes e, sobretudo, as
imagens de sua gente, respirando as brasas daquele mundo longínquo.
Nem mesmo as oceânicas reservas subterrâneas que inundavam
a imaginação do engraxate visionário, poderiam regar o areal tristonho
e sem oásis daquela alma solitária de migrante.
Da calçada, prestes a cruzar a rua, voltei-me para o interior da
oficina: em seu microcosmo físico, três personagens, três mundos; o
inaudível garantidor do direito de ir e vir, o percussionista navegador
das águas da utopia e a ave de arribação portando nas asas o próprio
ninho deserto.
À minha frente, os ônibus de assentos encardidos, cuspindo
fuligem negra, e os motoqueiros endoidecidos pela pressa, com suas
máquinas de ronco estridente, cuspindo impropérios contra motoristas
e pedestres.
*Crônica premiada em segundo lugar, no concurso nacional Prata da Casa, da Casa Brasileira de Livros, edição de 2025.

Wlalter Paulo Sabella

Wlalter Paulo Sabella

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Wlalter Paulo Sabella
Olhares
Os olhos que me fitam
sabem mares jamais tocados
pela quilha das aventuras
E terras livres de fronteiras,
ermas das sombras dos homens.
Os olhos que me fixam
nada sabem das fadigas
que medram no rastro das andanças.
Os olhos que me cravam
a certeza de seus sonhos
querem campos virgens de lavor
e asas de amplidão.
Querem tudo que as utopias consentem
e muito além do que proíbem.
Sonham ares e caminhos
nunca dantes percorridos.
Os olhos que me veem
amam mundos prometidos
correm céus, viajam sóis,
espreitam cósmicas miragens.
Nada escondem ou confessam
nem ocultam sob o véu das faces.
Os olhos que me crivam
e hoje me sabem outro,
embora com indulgência,
pedem conta de meus atos:
Onde jaz a fantasia?
Do que é morta a esperança?
Os olhos que me acompanham
estão nas telas do tempo
cerrados em minhas retinas.
Pertencem a quem já fui.
São os olhos do menino
que há muito já não sou.



Wlalter Paulo Sabella



BABEL
Em tempos mais antigos, eram usuais as expressões “declamar um poema” ou “recitar um poema”; todavia, como tudo se expõe a mudanças, para a verbalização de um escrito poético sedimentou-se o uso da expressão “dizer um poema”. É o que faço neste post, com o poema “BABEL”, que escrevi e publiquei há mais de 15 anos, tendo-se dado, recentemente, sua republicação. Caso tenha interesse em ouvir o poema “dito”, basta um touch no retângulo escuro, abaixo da Babel mítica e ao lado da Babel contemporânea. Duração: 3min46s.

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